quinta-feira, 11 de junho de 2009

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Memórias de uma educadora
Shirley Ramos da Silva
A autora conta como se tornou professora, movida por uma situação de necessidade, já que não era esta sua primeira opção

Paulo Freire nos diz que encontramos o caminho ao caminhar. Isso quer dizer que não temos uma idéia exata de para onde vamos ou daquilo que construiremos ao colocar os pés na estrada. À medida que olhamos para trás, podemos refletir sobre o que fizemos de nós e como deixamos o outro. Foi assim que este texto nasceu: de um repensar a prática docente e de um olhar de dentro da profissão a minha construção como educadora.
Até os 20 anos, eu não havia pensado em direcionar minha vida profissional para o magistério. Ao ingressar no ensino médio, na época ainda segundo grau, optei pelo curso de formação geral. Mais do que opção, isso foi algo quase natural, pois pretendia fazer vestibular para um carreira muito concorrida e, para tanto, precisava de conhecimentos gerais bem fundamentados. Depois, pensar em estudar no curso de formação de professores era quase uma violência: não gostava de criança, não tinha a menor habilidade para trabalhos manuais e não estava disposta a mudar de colégio, já que o meu não oferecia esse curso.
Antes de começar a cursar o ensino médio, eu já havia escolhido a carreira e a universidade em que estudaria. Assim, ao terminar a escola básica, prestei vestibular para Jornalismo na UFRJ. Depois de formada, pretendia fazer mestrado e posteriormente o doutorado e trabalhar em pesquisa. No entanto, não passei no vestibular. Não desanimei, mas resolvi mudar de curso e seguir o mesmo trajeto profissional: mestrado-doutorado-pesquisa. Assim, em 1996, prestei vestibular para História na mesma universidade. Fui aprovada, mas não pude cursar. Meus pais se divorciaram e meu pai deixou claro que não teria mais responsabilidade sobre os filhos. "Vocês terão que se virar". Eu não sabia fazer nada além de estudar. Concluí a escola com uma formação geral razoável; porém, quando comecei a viver e precisei sobreviver, percebi que ela não tinha me deixado um manual de sobrevivência.
Quando nos encontramos sós, conseguimos dar um jeito. Porém, eu tinha uma mãe que necessitava de mim. Minhas irmãs construíram suas vidas, e minha mãe não fazia parte delas. Assim, não pude ir para o Rio e efetuar minha matrícula na universidade. Fui parar em uma livraria e, muito sem jeito, comecei a trabalhar. Alguns meses depois, parei para pensar na minha situação - até então estava anestesiada - e falei para mim mesma: "Se eu continuar trabalhando no comércio, não vou conseguir fazer nada da minha vida. Entro às 8 horas na livraria e, muitas vezes, não tenho hora para sair, o que inviabiliza qualquer tentativa de estudar". Comecei a ler um texto de Leonardo da Vinci em que ele dizia que a necessidade é a mãe de todas as invenções. Heureca! Vou ser professora!
A idéia do magistério surgiu em um momento de necessidade, porém fiquei diante de dois problemas: em primeiro lugar, não tinha habilitação para lecionar; em segundo, se quisesse fazer o Curso Normal, teria que parar de trabalhar, pois não havia curso noturno. Parecia impossível... Por coincidência, encontrei uma amiga que há muito tempo não via. Conversando, descobri que ela estava fazendo uma complementação pedagógica que a habilitaria para lecionar no primeiro segmento. Tratava-se de um curso a distância. Estudavam-se os módulos em casa, durante o mês e, em um final de semana mensal, aconteciam os encontros pedagógicos e a avaliação. No mês seguinte, eu já estava matriculada em uma nova turma.
Um ano depois - o curso tinha duração de 16 meses - pedi demissão da livraria e fui parar em uma escola para fazer estágio. Os alunos gostaram muito de mim. Como a direção havia demitido a secretária, fui convidada para assumir a secretaria. Aceitei. Seis meses depois concluí o curso, e a professora de português deixou a escola. Como diz o poeta, "de repente, não mais que de repente", assumi quatro turmas. Quando me dei conta, estava em uma sala de aula impecável, com um bando de seres em miniatura, chamando a professora - eu! - de tia, completamente dependentes, completamente condicionados àquilo que eu desde sempre mais abomino dentro da escola: ao sinal, à forma escolar e ao livro didático.
Era um ambiente perfeito para a tortura. Mais uma vez, ouvi a voz do gênio dentro de mim: "a necessidade é a mãe de todas as invenções". Então percebi que, para que eu conseguisse realizar um trabalho satisfatório naquelas turmas, ao menos para mim, mais do que ensinar seria necessário educar. E, para começar, teria de ser pelo meu olhar. Se eu não gostava de criança e não tinha tato com elas, o que fazer? Vê-las em sua essência; vê-las como pessoas. Dessa forma, "descaracterizá-las" foi, para mim, um primeiro passo de aproximação a fim de iniciar meus projetos de transformação.
Foi um trabalho difícil, tanto para mim quanto para elas. Mudar hábitos é algo muito complicado, e não foi nada fácil. Contudo, a resistência ao meu trabalho foi muito maior por parte dos pais.
Para cada trabalho realizado traçava objetivos que visavam muito mais ao ato educativo do que à aprendizagem sistemática. As noções dos fundamentos da língua, sua estruturação, sua compreensão e seu uso eram planos secundários. Para mim, funcionavam quase como algo supérfluo. O que eu pretendia, de fato, era proporcionar aos alunos experiências de mudança. E fazia, assim, com que eles procurassem enxergar que, se nós não somos capazes de modificar o que quer que seja, as coisas param, o mundo pára. Então, aumentar o tom de voz para que o colega que está no fundo da sala consiga ouvir é uma mudança: a palavra que chegou a ele não se tornará vazia, ele não será mais a mesma pessoa; pensar em outra atitude para substituir uma que "está cansada de ser reproduzida" é uma mudança; deixar que um novo hábito tome o lugar de outro é uma mudança; pensar em novas possibilidades para a vida e viver essas novas possibilidades é uma mudança; deixar de atribuir um grau de parentesco à professora é uma mudança; encontrar "verdades" fora do livro didático é uma mudança; pensar que a vida pode ser diferente e as coisas devem ser reestruturadas não só é uma grande mudança como é uma grande contribuição para a sociedade.
As mudanças que eu tanto desejava devagar foram acontecendo. Não por discursos pomposos ou apelos, mas pelo tão simples e tão transformador contato com o outro, na troca do dia-a-dia. Só me dei conta disso no final do ano letivo, quando estava saindo de casa para tomar um sorvete com um amigo. Escutei alguém gritando "Professora! Professora!", mas continuei andando, sem me voltar. "Não é comigo", dizia meu inconsciente. Até que senti alguém me cutucando e olhei. Era um aluno da segunda série, que me chamava. de "Professora"...
Essas são algumas memórias da minha docência. Pelo menos de minha história como educadora formal. Na verdade, na semana passada acabei me dando conta de que a minha "carreira de educadora" começara muito antes, antes mesmo de encontrar Leonardo da Vinci. Há alguns anos, encontrei a mãe de uma colega de escola, a qual não via desde a formatura. Essa colega sempre quis morar em outra cidade, mas os pais nunca deixaram. Ela também não queria abandonar o conforto de casa e construir sua vida longe da mãe. Eu sempre a estimulava a seguir em frente, crescer profissional e pessoalmente, mas nunca dava em nada. O máximo que ela fazia era arrumar uma briga com o pai, pedindo que a sustentasse no lugar em que ela pretendia morar.
Aconteceu que, quando essa amiga me viu trabalhando na livraria e assumindo minha casa e minha mãe, descobriu que podia "se virar" também. Ela mudou para São Paulo e continua por lá, sem a mesada do pai, trabalhando e fazendo faculdade. A esta altura, já deve ter terminado. Foi um ato educativo, ainda que informal.

Shirley Ramos da Silva é pedagoga, especialista em administração escolar e orientadora pedagógica na rede municipal de Teresópolis (RJ).
shirleyramosdasilva@hotmail.com

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